Caso de recenseamento
Carlos Drummond de Andrade
O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínqüo, aonde nunca chegam as notícias.
- Não quero comprar nada.
- Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.
- Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?
E fecha-lhe a porta.
Ele bate de novo.
- O senhor outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?
- A senhora ano me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher esta papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.
- Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!
A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta reestabelecer o diálago.
- Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa e antes que eu chame meu marido!
- Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele. ( Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário).
- Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.
- É esse camelô aí que ano quer deixar a gente sossegada!
- Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo...
- Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria!
A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!
O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é nem camelô, nem policial, nem cobrador de impostos, nem enviado de Tenório Cavalcanti.
A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender o rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa, nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do governo.
- O senhor tem filhos, seu Ediraldo?
- Tenho três, sim senhor.
- Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?
- Pois não. Tenho Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4.
- Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?
- Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.
- Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...
- Isso eu não sei, não me lembro.
E voltando-se para a cozinha:
- Mulher, sabes o nome de Pipoca?
A mulher aparece, confusa.
- Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta. Reviraram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.
- Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?
- Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado minha senhora, disponham!
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