Tuesday, May 29, 2007

Caso de recenseamento


Carlos Drummond de Andrade

O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínqüo, aonde nunca chegam as notícias.

- Não quero comprar nada.

- Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.

- Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?

E fecha-lhe a porta.

Ele bate de novo.

- O senhor outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?

- A senhora ano me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher esta papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.

- Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!

A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta reestabelecer o diálago.

- Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa e antes que eu chame meu marido!

- Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele. ( Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário).

- Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.

- É esse camelô aí que ano quer deixar a gente sossegada!

- Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo...

- Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria!

A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!

O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é nem camelô, nem policial, nem cobrador de impostos, nem enviado de Tenório Cavalcanti.

A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender o rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa, nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do governo.

- O senhor tem filhos, seu Ediraldo?

- Tenho três, sim senhor.

- Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?

- Pois não. Tenho Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4.

- Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?

- Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.

- Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...

- Isso eu não sei, não me lembro.

E voltando-se para a cozinha:

- Mulher, sabes o nome de Pipoca?

A mulher aparece, confusa.

- Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta. Reviraram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.

- Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?
- Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado minha senhora, disponham!