Monday, January 29, 2007

Vergonha de viver

Clarice Lispector

Há pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais me incluo. Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço. Desculpem eu ser eu. Quero ficar só! grita a alma do tímido, que só se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o quente aconchego das pessoas. Vai, Carlos, vai ser gauche na vida. (Não sei se estou citando Drummond de modo certo, escrevo de cor.)

Sempre fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando, há muitos anos, fui passar férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma pequeníssima estação deserta, donde se telefonava para a fazenda, que ficava a meia hora dali, num caminho perigosíssimo, rude e tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de precipícios.

Telefonei para a fazenda e eles me perguntaram se queria carro ou cavalo. Eu disse logo cavalo. E nunca tinha montado na vida.

Foi tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e fez-se subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada enxergava à minha frente. Mas os relâmpagos revelavam-me verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos molhados. E eu, ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida.

Quando finalmente cheguei à fazenda, não tinha força de desmontar: deixei-me praticamente cair nos braços do fazendeiro.

Nessa fazenda, que recebia hóspedes e que era maravilhosa com seus bichos, sofri horrores. Só depois de uns três dias é que comecei a conversar com os outros hóspedes e a me descontrair na hora das refeições, pois eu tinha vergonha de comer na frente de estranhos e passava muita fome.

Lá estava um japonês que me perguntava se eu jogava xadrez. Respondi audaciosamente que ele me ensinasse, que eu aprenderia logo e jogaria com ele. E de repente me vi tendo que enfrentar tantas regras de jogo e com vergonha de não aprender. Mas logo em seguida aprendi superficialmente a jogar. Acontece que, creio eu, por puro acaso dei um xeque-mate no japonês, que não quis mais jogar comigo. Senti-me infeliz, achava que o japonês não me perdoaria e que não gostava de mim. Fiquei muito tímida com ele.

Foi pois com enorme espanto que o ouvi me dizer na hora da despedida, com uma delicadeza toda oriental que não elogia na cara, o que seria sufocante para a minha timidez. Ele disse: “Agradeço aos seus pais por terem feito você.”

De doze para treze anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio inglês. Eu não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio ousadamente os nomes de comida mais complicados. E me via tendo de comer, por exemplo, feijão branco, cozido na água e sal. Era o castigo de minha desenvoltura de tímida.

E quando eu era pequena, em Recife, meu encabulamento nunca me impediu de descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços: “Quer brincar comigo?” Às vezes me desprezavam como menina.

Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu, teimosa, continuava escrevendo.

Aos nove anos escrevi uma peça de teatro de três atos, que coube dentro de quatro folhas de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi a peça atrás de uma estante e depois, com medo de que a achassem e me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo infelizmente porque tenho curiosidade do que eu achava de amor aos nove precoces anos.


(Jornal do Brasil, 14 de outubro de 1972)

Monday, January 01, 2007

O DIÁRIO DE MUZEMA

Stanislaw Ponte Preta*

Muzema é um bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdição da 32ª. Delegacia Distrital e nunca dá bronca. Ou melhor, minto... não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo. Diz que o delegado da 32ª. Estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana, feliz com o sossego, quando um bando de perto de 200 pessoas invadiu a delegacia, carregando no ar um coitado baixote e magrinho, com a cara mais amassada que pára-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de acordar prontidão.

O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:

- Chamem a Polícia!!! - mas aí percebeu que ele mesmo é que era a Polícia e perguntou que diabo era aquilo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo tempo, o que obrigou o Dr. Levi a berrar mais alto ainda, ordenando:

- Um de cada vez, pombas!

Aí um dos que carregavam o pequenino, ordenou que os companheiros pusessem "aquele rato" no chão (a expressão é lá do cara) e começou a explicar:

- Nós somos moradores do bairro de Muzema, doutor Delegado.

- Sim. E esse pequenino aí?

- Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse cretino aí também é. Imagine o senhor que ele tem um caderno grosso, que ele chama de "Meu Diário", onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.

- Como é que é? - estranhou o delegado.

Começou todo mundo a berrar outra vez e, enquanto um guarda dava um copo de água para o diarista arrebentado, o delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:

- Calem-se! Um só de cada vez!

Foi aí que deram a palavra pro dono do caderno:

- É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros fazem sem ser importunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada coisa de arrepiar. Ainda ontem vi a mulher daquele ali (e apontou para um sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um outro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo).

Esta informação bastou para que o assinalado marido partisse pra cima do encolhido e o tumulto se generalizasse. Coitado do delegado, já estava quase rouco, quando conseguiu reimplantar a ordem na 32ª DD.

- Prossiga! - disse pro pequenino.

O pequenino pigarreou e prosseguiu:

- Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo que está escrito aqui é verídico.

- Como é o seu nome? Onde você mora?

- Edson Soares. Moro lá mesmo em Muzema. Lote "A", casa 18.

O Delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou menos assim, escritas nele: "Dona Jurema, do lote "B", casa 75, estava saindo de madrugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um cacho com ela há muito tempo". Ou então: "Lilico continua fingindo que é noivo da filha de Dona Júlia, mas se aquilo é noivado, eu sou girafa. Como eles mandam brasa, atrás do muro da casa dela".

O Delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis saber como é que os personagens daquele diário tinham descoberto o que estava escrito ali. O pequenino foi sincero:

- Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto aí (e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá), e o miserável do garoto lendo em voz alta: "...o seu Osooo... Osorio. Não: Osório. O seu Osório quando sai pra o tral... tralba... para o trabalho, devia levar a muuu... a mulher dele. Ela é muito assada... assada não... muito assanhada".

- Eu achei o diário dele - falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório.

Já ia saindo onda outra vez. O pessoal do bairro pacato estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson Soares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa, o Delegado Levi perguntou ao dono do diário:

- O senhor também é poeta?

- Mais ou menos, né?

- Eu pergunto - esclareceu o delegado - porque este versinho aqui está interessante, e leu no diário: "Para o José Azevedo / O futebol não cola / Pois se for cabecear / Na certa ele fura a bola".

Pimba... mais uma bolacha premiou a cara do poeta. Ninguém conseguiu segurar José Azevedo, residente na Muzema, Lote "J", casa 77. O pau roncou solto e só quando reforço chegou é que o delegado conseguiu botar em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou embora, aconselhando: - Vocês vejam se não dão margem ao artista de se expandir tanto em seu futuro diário, tá?

O pessoal prometeu.

* pseudônimo do escritor Sérgio Porto.