Tuesday, June 26, 2007

Arriscar é Viver

"Rir é arriscar-se a parecer louco.
Chorar é arriscar-se a parecer sentimental.
Estender a mão para o outro é arriscar-se a se envolver.
Expor seus sentimentos é arriscar a expor seu eu verdadeiro.
Amar é arriscar-se a não ser amado.
Expor suas idéias e sonhos ao público é arriscar-se a perder.
Viver é arriscar-se a morrer.
Ter esperança é arriscar-se a sofrer decepção.
Tentar é arriscar-se a falhar.
Mas...é preciso correr riscos.
Porque o maior azar da vida é não arriscar nada...
Pessoas que não arriscam, que nada fazem, nada são.
Podem estar evitando o sofrimento e a tristeza.
Mas assim não podem aprender, sentir, crescer, mudar, viver...
Acorrentadas às suas atitudes, são escravas;
Abrem mão de sua liberdade.
Só a pessoa que se arrisca é livre...
Arriscar-se é perder o pé por algum tempo.
Não arriscar é perder a vida..."

Sören Aabye Kierkegaard

Monday, June 25, 2007

Odisséia

O amor foi a função. Bebeu, cantou e bailou: estava muito excitado, tiveram de levá-lo para casa e prendê-lo no quarto para que repousasse.

No dia seguinte o amor bailou e cantou sem beber, e era sempre primavera nos seus modos e falas. O amor viajou, voltou, fazia piruetas, trocadilhos, esculturas, criava línguas e ensinava-as de graça. Todos o queriam para companheiro, paravam de guerrear para abraçá-lo, jogavam-lhe moedas, que ele não apanhava, gerânios que oferecia às crianças e às mulheres.

O amor não adoecia nem ficava mais velho, resplandecia sempre, havia quem o invejasse, quem inventasse calúnias a seu respeito, o amor nem ligava. Cercaram sua casa de madrugada, meteram-lhe a cabeça num saco preto, conduziram-no a um morro que dava para o abismo, interrogaram-lhe, bateram-lhe, ameaçaram jogá-lo no precipício, jogaram.

O amor caiu lá embaixo, aos pedaços, mas se recompôs e foi preso outra vez, aplicaram-lhe choques elétricos, arrancaram-lhe as unhas, os dedos, o amor sorria e quando não podia mais sorrir, gritava numa de suas línguas novas, que não era entendida. E desfalecendo voltava à consciência; e torturado outra vez, era como se não fosse com ele.

Quebraram o amor em mil partículas e ninguém pode ver as partículas. Foi sepultado formalmente no fim do mundo, que é pra lá da memória. Ninguém localizou, mas todos falavam nele, o amor virou um sonho, uma constelação, uma rima e todos falavam nele.

E ressuscitou no terceiro dia.

Carlos Drummond de Andrade

Final Feliz, Natal!


neste natal
quando o menino jesus
acordar
e escovar os dentes
com ultra brite
tomar
banho com palmolive
servir-se
para o breakfast
com chá mate leão pão pullman
bolachas maria
procurar
a chave do chevette
ir
correndo para a kibon
onde trabalha

neste natal
quando o menino jesus
voltar para o almoço
e comer
fejoada bordon com arroz camil
e na sobremesa goibada cascão

ouvir robertinho do recife
fafá de belém

procurar
a chave do chevete
voltar
correndo para a kibon
e depois do expediente
passar
no bar
encontrar os amigos
e beber da costumeira 51
se atrasar para o jantar
(caldo verde knorr)

neste natal
quando ligar a t.v. mitsubishi
para assistir a plumas e paêtes
terá o menino jesus
crescido
e bêbado com o château duvalier
da última ceia
estará
à margem da vida
morto
crucificado
tendo como chagas
as 5 estrelas do cruzeiro do sul
indicando o caminho de belém

(viaje bem viaje vasp)


Luiz Vitor Martinello

Sunday, June 24, 2007

Alma

Há almas que têm as dores secretas
As portas abertas sempre pra dor
Há almas que têm juízo e vontade
Alguma bondade e algum amor

Há almas que têm espaços vazios
Amores vadios, restos de emoção
Há almas que têm a mais louca alegria
Que é quase agonia, quase profissão

A minha alma tem um corpo moreno
Nem sempre sereno, nem sempre explosão
Feliz esta alma que vive comigo
Que vai onde eu sigo o meu coração

(Sueli Costa/Abel Silva)

Saturday, June 23, 2007

Amor e Medo

I

Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! Bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
" - Meu Deus! Que gelo, que frieza aquela!"

Como te enganas! Meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela - eu moço; tens amor - eu medo!...

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me intumesce os seios.
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea - ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

Ai! Se abrasado crepitasse o cedro
Cedendo ao raio que a tormenta envia.
Diz: - que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho;
E a pobre nunca reviver pudera
Chovesse embora paternal orvalho!

II

Ai! Se eu te visse no valor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco.
Soltos cabelos nas espáduas nuas!...

Ai se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos - palpitante o seio!...

Ai se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...

Diz: - que seria da pureza d'anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
- Tu te queimaras, a pisar descalça,
- Criança louca, - sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois... desperta no febril delírio,
- Olhos pisados - como um vão lamento,
Tu perguntaras: - qu'é da minha c'roa?...
Eu te diria: - desfolhou-a o vento!...

---------

Oh! Não me chamas coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito,
És bela - eu moço; tens amor, eu - medo!...

Casimiro de Abreu, Outubro - 1858.

Friday, June 22, 2007

Infância

Ó anjo da loura trança,
que esperança
nos traz a brisa do sul!
- Correm brisas das montanhas...
Vê se apanhas
A borboleta de azul!...

Ó anjo da loura trança,
És criança,
A vida começa a rir.
- Vive e folga descansada.
Descuidada
Das tristezas do provir.

Ó anjo da loura trança,
Não descansa
A primavera inda em flor;
Por isso aproveito a aurora
Pois agora
Tudo é riso e tudo amor.

Ó anjo da loura trança,
A dor lança
Em nossa alma agro descer.
- Que não encontres na vida
Flor querida,
Senão contínuo prazer.

Ó anjo da loura trança,
A onda é mansa
O céu é lindo dossel;
E sobre o mar tão dormente,
Docemente
Deixa correr teu batel.

Ó anjo da loura trança,
Que esperança
Nos traz a brisa do sul!
- Correm brisas das montanhas...
Vê se apanhas
A borboleta de azul!...

Casimiro de Abreu, Rio - 1858.

Tuesday, June 19, 2007

Não suspirem mais, mulheres

Não suspirem mais, mulheres, não suspirem mais,
Os homens sempre foram enganadores,
Um pé no mar, e outro, na margem,
Nunca constantes em coisa alguma:
Então, não suspirem, mas deixem-os ir,

E vocês, se mantenham alegres e belas,
Convertendo todos os seus lamentos
Em canções de alegria.


Não cantem mais versos breves e simples, não os cantem mais,
Sobre enganos tão obtusos e pesados;
A farsa dos homens sempre aconteceu,
Desde o início de cada frondoso verão:

Então, não suspirem mais.

William Shakespeare, canção de "Muito Barulho Por Nada"

(Traduzido por Antonio Alexandre de Lima)


Sigh no more, ladies, sigh no more,
Men were deceivers ever,
One foot in sea and one on shore,
To one thing constant
never:
Then sigh not so, but let them go,

And be you blithe and bonny,
Converting all your sounds of woe
Into Hey nonny, nonny.

Sing no more ditties, sing no more,
Of dumps so dull and heavy;
The fraud of men was ever so,
Since summer first was leafy:
Then sigh not so.

William Shakespeare, “Much Ado About Nothing”

Monday, June 18, 2007

Começo, meio e fim

A vida tem sons que pra gente ouvir
Precisa entender que um amor de verdade
É feito canção qualquer coisa assim
Que tem seu começo, seu meio e seu fim

A vida tem sons que pra gente ouvir
Precisa aprender a começar de novo
É como tocar o mesmo violão
E nele compor uma nova canção

Que fale de amor
Que faça chorar
Que toque mais forte esse meu coração

Ah! Coração
Se apronta pra recomeçar
Ah! Coração
Esquece esse medo de amar de novo

Tavito - Ney Azambuja - Paulo Sérgio Valle

Sunday, June 17, 2007

O Medo de Amar é o Medo de Ser Livre

O medo de amar é o medo de ser
Livre para o que der e vier
Livre para sempre estar onde o justo estiver


O medo de amar é o medo de ter
De a todo momento escolher
Com acerto e precisão a melhor direção


O sol levantou mais cedo e quis
Em nossa casa fechada entrar
Prá ficar


O medo de amar é não arriscar
Esperando que façam por nós
O que é nosso dever: recusar o poder


O sol levantou mais cedo e cegou
O medo nos olhos de quem foi ver
Tanta luz


Beto Guedes/Fernando Brant

Hoje é domingo

Hoje é domingo
Pé de cachimbo
Cachimbo é de barro
Bate no jarro
O jarro é fino
Bate no sino
O sino é de ouro
Bate no touro
O touro é valente
Bate na gente
A gente é fraco
Cai no buraco
O buraco é fundo
Acabou-se o mundo

Saturday, June 16, 2007

Meninice

Lembra-te minha irmã,
Da velha casa colonial onde
nascemos
E onde havia o retrato do vovô
Simões Lima?


Do relógio de pesos, dos móveis
De jacarandá do quarto da vovó?


Da mamãe, do papai
Suaves mais auteros e que liam à
noite
O rocambole e o Penson du Terrail?


Da mesa de jantar em que
garatujamos
A lápis de cor, quanta coisa havia?


Lembra-te da maior emoção
Que já tivemos: tão forte
Que ficamos parados
Olhando-nos mutuamente
Aquela tarde em que chegou
“O grande circo internacional de
Vigo”?


... o palhaço Serafim...
... o anão que engolia espada...
... o cachorro que sabia mágicas...
... o cavalo ensinado...
... o burrinho que mordia o palhaço...
... o palhaço que levava tombos...


A charanga do circo!
Que beleza a charanga


De repente vem a mocinha do
trapézio...
Cumprimentos, reverências, um
sorriso
Para o respeitadíssimo público da
cidade!
Tu não podias ver...
Se a mocinha caísse!
Meu Jesus!


Eu olhei – ela subiu,
Deu duas voltas imortais!
A charanga parou.


A emoção da cidade badalou!
Tu não podias ver!
Se a mocinha caísse, meu Jesus!
Eu olhei: ela deu outra
Volta sensacional e zás!
As calcinhas da moça se romperam!
Ela desceu...


A charanga bateu forte
Meu coração bateu também!


Um dia o circo foi-se embora...
Foi-se embora a moça das
calcinhas...


Tu eras uma inocência silenciosa
Que choravas por tudo
Eu era um menino de olhos
extasiados
Que tinha saudade
Mas não choravam nunca!


Lembras-te do meu gorro de marujo,
De minha blusa de gola azul marinho?
Do teu saguim que não morreu
enforcado
Na grade do jardim
Tu choraste tanto!


À noite tiveste medo da alma do
saguim.
Tu eras uma inocência superticiosa
Que chorava por tudo...


Eu era um menino de olhos
extasiados
Que tinham saudades
Mas não chorava nunca!

Jorge de Lima

Friday, June 15, 2007

Vamos acabar com essa folga


O negócio aconteceu num café. Tinha uma porção de sujeitos, sentados nesse café, tomando umas e outras. Havia brasileiros, portugueses, franceses, argelinos, alemães, o diabo.

De repente, um alemão, forte pra cachorro, levantou e gritou que não via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial, motivada pela provocação e logo o turco, tão forte como o alemão, levantou-se de lá e perguntou:

-Isso é comigo?

-Pode ser com você também – respondeu o alemão.

Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma traulitada tão segura que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu que não havia homem ali pra ele. Queimou-se então um português que era maior ainda do que o turco. Queimou-se e não conversou. Partiu para cima do alemão e não teve outra sorte. Levou um murro por debaixo do queixo e caiu sem sentidos.

O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez ver aos presentes que o que dizia era certo. Não havia homem para ele ali naquele café. Levantou-se então um inglês troncudo pra cachorro e também entrou bem. E depois do inglês foi a vez do francês, depois um norueguês, etc... Até que, lá do canto do café, levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de picardia para perguntar, como os outros:

-Isso é comigo?

O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu um sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado do alemão. Parou perto, balançou o corpo e... Pimba! O alemão deu-lhe uma na cabeça com tanta força que quase desmonta o brasileiro.

Como, minha senhora? Qual é o fim da história? Pois a história termina aí, madama.

Termina aí que é pros brasileiros perderem essa mania de pisar macio e pensar que são mais malandros do que os outros.


Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista e cronista carioca Sérgio Porto (11/1/1923 - 29/9/1968)

Thursday, June 14, 2007

Astúcia de Velho Negro

Negro Velho é águia como ele só. Estava a roda em animada palestra na porta da botica do major Modesto, em Itapema, quando chegou Negro Velho de chapéu na mão e foi logo perguntando:

- Suncês num são capais di mi dizê quem é que é o home de mais de bem daqui da cidade?

- É o padre João, o vigário. Um homem muito sério

- Num vê qui eu tô cum quinhento mil réis aqui n’algibeira. Eu vou viajar, são capais di robá eu... ladrão tá cheio aí. Intão vô dá os quinhento mil réis pro padre guardá pra mim.

Logo na esquina estava formado outro grupo a conversar. O Negro Velho fez a mesma pergunta e obteve a mesma resposta.

– Vô de viagê, e agora eu vô pedi pra seu vigário guardá a nota de quinhento. Uma nota nova… que tá estralando no dobrar.

Repetiu a cena em diversos pontos da cidade. E desapareceu.

Daí um mês, surgiu na casa do vigário.

– Sô vigário, eu vim buscá os quinhento mil réis que dei pra vassuncê guardá pra mim.

– Que quinhentos mil réis, homem? Você está maluco? Eu nunca te vi mais gordo, seu…

- Ah, seu padre! Num faça isso cum Negro Véio. Cidade inteira sabe que eu dei quinhento mil réis pra vassuncê guardá pra mim. Testemunha tá cheio. Tá bulindo de testemunha aí que sabe.

– Puxa daqui, seu velhaco! Seu tratante!

Negro Velho saiu. Justou o rábula e acionou o vigário.

Na primeira audiência, compareceram as partes e as testemunhas. Perguntou o juiz:

- Senhor vigário, este homem alega que lhe deu quinhentos mil réis para guardar. É falso?

- Num é mentira não, sô dotô. Era uma nova nova, cum aqueles oião grande, grande!

Um fazendeiro, amigo do vigário, a fim de poupar-lhe incômodos, interveio, dirigindo-se ao preto:

- Onde é que você está com a cabeça, homem? Você não deu os quinhentos mil réis pro padre guardar. Você deu os quinhentos mil réis foi pra mim guardar.

– Não sinhô! Esses foi outros quinhento mil réis. Depois num vá querê negá também, uai!

Cornélio Pires

Aula de português

A linguagem
na ponta da língua
tão fácil de falar
e de entender.

A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que quer dizer?

Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.

Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,

em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada

do namoro com a priminha.
O português são dois; o outro, mistério.

Carlos Drummond de Andrade. Esquecer para lembrar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

Wednesday, June 13, 2007

Namorados

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
– Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
– Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada?
A moça se lembrava:
– A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
– Antônia, você parece uma lagarta listrada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
– Antônia, você é engraçada! Você parece louca.


Manuel Bandeira. Poesia completa & prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.

Tuesday, June 12, 2007

Simplicidade de Caipira

O genro de Zé Ponciano agonizava a três léguas de distância da cidade. Eram três horas de madrugada de julho, fria que não tinha altura, quando Ponciano, trazendo um animal a destro, bateu na janela da casa do vigário que apareceu envolto num cobertor tremendo de frio.

– O que é que há?

- Ih, seu vigário, eu vim ligêro buscá vassuncê pra ajudá meu genro a morrê.

– Qual é a distância que tem daqui lá?

- Três légua das boa eu acho que tem!

- Mas você quando saiu, o doente não estava muito mal?

- Tava, seu vigário. Tava quase na última suspiração. Tava inté com sororoca.

– Então não adianta nada a minha ida. Quando eu lá chegar, já acho o homem morto.

– Num tem perigo, seu padre. Eu deixei uns home entretendo ele lá, até vassuncê chegá.


Cornélio Pires.

Monday, June 11, 2007

Cornélio Pires

Depois de um bom jantar: feijão com carne-seca, orelha de porco e couve com angu, arroz-mole engordurado, carne de vento assada no espeto, torresmo enxuto de toicinho da barriga, viradinho de milho verde e um prato de caldo de couve, jantar encerrado por um prato fundo de canjica com torrões de açúcar, Nhô Tomé saboreou o café forte e se estendeu na rede.
A mão direita sob a cabeça, à guisa de travesseiro, o indefectível cigarro de palha entre as pontas do indicador e do polegar, envernizados pela fumaça, de unhas encanoadas e longas, ficou-se de pança para o ar, modorrento, a olhar para as ripas do telhado.
Quem come e não deita, a comida não aproveita, pensava Nhô Tomé... E pôs-se a cochilar. A sua modorra durou pouco; Tia Policena, ao passar pela sala, bradou assombrada:
– Êêh! Sinhô! Vai drumi agora? Não! Num presta... Dá pisadêra e póde morrê de ataque de cabeça! Despois do armoço num far-má... mais despois da janta?!


Cornélio Pires. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1987.

Sunday, June 10, 2007

Cornélio Pires

Fui à lousa e desenhei um esqueleto
- Algum de vocês sabe o que isto?
- Eu sei! Gritou um menino de olhar vivo.
- Que é?
- Sombração.

Cornélio Pires

Saturday, June 09, 2007

Morre lentamente

"Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com seu trabalho,

quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,

quem não se permite pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos".


Pablo Neruda (1904-1973), poeta chileno, pseudônimo de Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto


Friday, June 08, 2007

A inconstância dos bens do mundo

MORALIZA O POETA NOS
OCIDENTES DO SOL A INCONSTÂNCIA
DOS BENS DO MUNDO

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregório de Mattos Guerra


DE L'INSTABILITÉ DES
CHOSES DE CE MONDE

Le Soleil point, mais ne brille pas plus d'un jour,
La lumière bientôt se masque en nuit obscure,
L'ombre triste s'étend quand meurt la clarté pure,
Tout comme la joie cède aux chagrins longs et lourds

Pourquoi s'est-il levé pour un instant si court,
Le Soleil? C'est à peine si son éclat dure.
Comment, Beauté, toi aussi tu te défigures?
Le plaisir de souffrir serait-il un recours?

Le Soleil lumineux manque de fermeté.
La beauté nie aussi toute persévérance,
Et la tristesse prend racine en la gaîté.

La science, un jour, naquit du sein de l'ignorance,
C'est un bien que la loi de nature a dicté:
La puissance du Monde est faite d'inconstance.

LORRAINE, Bernard -Poèmes du Brésil.
Saint-Amand, Éditions Ouvrières

A Rainha (La Reina)

Eu te nomeei rainha.
Existem mais altas que tu, mais altas.
Mais puras do que tu, mais puras.
Mais belas do que tu, mais belas.

Mas tu és a rainha.

Quando vais pelas ruas
ninguém te reconhece.
Ninguém vê a coroa de cristal, ninguém vê
o tapete de ouro vermelho
que pisas por onde passas,
o tapete que não existe.

E apenas apareces
cantam todos os dias
em meu corpo, as campanas
estremecem o céu
e um hino enche o mundo.

Somente tu e eu,
somente tu e eu, amor meu,
o escutamos.


La Reina

Yo te he nombrado reina.
Hay más altas que tú, más altas.
Hay más puras que tú, más puras.
Hay más bellas que tú, hay más bellas.
Pero tú eres la reina.
Cuando vas por las calles
nadie te reconoce.
Nadie ve tu corona de cristal, nadie mira
la alfombra de oro rojo
que pisas donde pasas,
la alfombra que no existe.

Y cuando asomas
suenan todos los ríos
en mi cuerpo, sacuden
el cielo las campanas,
y un himno llena el mundo.

Sólo tú y Yo,
sólo tú y yo, amor mío,
lo escuchamos.
Pablo Neruda in "Los versos del Capitán"

Thursday, June 07, 2007

As Pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.

Raimundo Correa

Wednesday, June 06, 2007

Ismália


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

Alphonsus de Guimaraens

O misantropo

A boca, às vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.

Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo à socapa!

Porque, desde que esse ódio atroz me veio,
Só traições vejo em cada olhar venusto?
Perfídias só em cada humano seio?

Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio?
E é preciso odiar para ser justo?!

(Versos e versões, 1887.)

Raimundo Correa

Tuesday, June 05, 2007

O último andar

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar.

Cecília Meirelles in "Ou Isto, ou aquilo"

Monday, June 04, 2007

Alfabeto Concreto

O "A" é uma letra com sótão. Chove sempre um pouco sobre o "a" craseado.

O "B" é um I que se apaixonou por um 3. O "b" minúsculo é uma letra grávida.

Ao "C" só lhe resta uma saída. O "c" cedilha, esse jamais tira a gravata.

O "D" é um berimbau bíblico.


O "e" minúsculo é uma letra esteatopigia (esteatopigia, ensino aos mais atrasadinhos,é uma pessoa que tem certa parte do corpo, que fica atrás e em baixo, muito feia).

O "E" ri-se eternamente das outras letras.

O "F", com seu chapéu desabado sobre os olhos, é um gangster á espera de oportunidade. O "f" minúsculo é um poste antigo.

A pontinha do "G" é que lhe dá esse ar desdenhoso. O "g" minúsculo é uma serpente de faquir.

O "H" é uma letra duplex. A parte de cima é muda. Serve também como escada para as outras letras galgarem sentido. O "h" é um dinossauro.

O "I" maiúsculo guarda, em seu porte de letra, um pouco do porte marcial de quando age como algarismo romano. O "i" minúsculo é um bilboque.

O "J" com seu gancho de pirata, rouba ás vezes o lugar do g. O "j" minúsculo é uma foca brincando com sua bolinha.

Vê-se nitidamente que o "K" é uma letra inacabada. Por enquanto só tem os andaimes. Parece que vão fazer um R. Junto com o "k" minúsculo, o "K" maiúsculo treina passo de ganso.

O "L" maiúsculo parece um I que extraíram com raiz e tudo.

Mas o "l" minúsculo não consegue disfarçar que é um número '1' espionando o alfabeto.

O "M" maiúsculo é um gráfico de uma firma demasiado instável. O "m" minúsculo é uma cadeia de montanhas.

O "N" é um M perneta. No "n" minúsculo pode-se jogar futeball com a bolinha do o.

O "O" maiúsculo boceja largamente da chatura das outras letras. o "o" minúsculo é um buraquinho no alfabeto.

O "P" é um "d" plantando bananeira. O "p" minúsculo é um "q" que vem de volta.

O "Q" maiúsculo anda sempre com o laço do sapato solto. O "q" minúsculo é um "p" se olhando de costas ao espelho.

O "R" ficou assim de tanto praticar halterofilismo.

Sente-se que o "S" é um cifrão fracassado. O "s" minúsculo é um cisne tranqüilo.

Na balança do "T" se faz jusTiça.

O "U" é uma ferradura da tipografia, protegendo o galope das ideias. O "u" minúsculo é um "n" com as patinhas pró ar.

O "V" é uma ponta de lança.

O "W" são 'vês' siameses (VV).

O "X" é uma encruzilhada.

O "Y" é a taça onde bebem as outras letras. Desapareceu do alfabeto porque se entregou covardemente, de braços para cima.

O "Z" é o caminho mais curto, depois da bebida. O "z" minúsculo é um 'esse' cubista.

Millôr Fernandes in Revista "O Pif-Paf", 1965

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.


Luís de Camões

Sunday, June 03, 2007

Gaetaninho

- Xi, Gaetaninho, como é bom!

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford.

O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.

- Eh! Gaetaninho! Vem prá dentro.

Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.

- Subito!

Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.

Êta salame de mestre!

Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.

O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.

Mas se era o único meio? Paciência.

Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.

Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Caetaninho.

Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.

Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.

Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.

Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.

Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.

O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.

- Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?

- Meu pai deu uma vez na cara dele.

- Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!

O Vicente protestou indignado:

- Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!

Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.

O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.

- Passa pro Beppino!

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.

- Vá dar tiro no inferno!

- Cala a boca, palestrino!

- Traga a bola!

Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.

No bonde vinha o pai do Gaetaninho.

A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.

- Sabe o Gaetaninho?

- Que é que tem?

- Amassou o bonde!

A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.

Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.


Antônio Alcântara Machado

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;


É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;


É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.


Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

Saturday, June 02, 2007

O dia da Criação


Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27

I
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas como o mar
Em bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por vias das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo o mal.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguem bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.


Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.


II
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Há umas difíceis outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva de domingo
Porque hoje é sábado


III
Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres com as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da esfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos mares de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, nem serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior dos instintos dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinícius de Moraes

Friday, June 01, 2007

Lisetta

Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz.

- Olha o ursinho que lindo, mamãe!

- Stai zitta!

A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância.

Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras.

- As patas também mexem, mamã. Olha lá!

- Stai ferma!

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.

- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?

- Ah!

- Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe.

A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.

Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:

- In casa me lo pagherai!

E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.

Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.

- Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que...ro o... o... o... Hã! Hã!

- Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!

- Um pou...qui...nho só! Hã! E... hã! E... hã! Um pou...qui...

- Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!

Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez.

O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo.

- Non piangere più adesso!

Impossível.

O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.

Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!

- Olha à direita!

Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.


A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.

Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.

O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.

Mas o Ugo chegou da oficina.

- Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!

Também Lisetta já não agüentava mais.


- Toma pra você. Mas não escache.

Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.

Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada:

- Ele é meu! O Ugo me deu!

Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.


Antônio Alcântara Machado

Alma minha gentil, que te partiste

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.


Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.


E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,


Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís de Camões