ROGÉRIO IVANOVICH CENY
Rogério Ceni está na lista dos 50 melhores jogadores do mundo da revista francesa France Football, candidato à Bola de Ouro, único atleta em atividade no continente americano.
Este blogueiro já não sabe mais o que falar dele e, por isso, recorre, mais uma vez, a quem sabe:
Por ROBERTO VIEIRA
Domingo no Morumbi.
Sob o olhar de milhares de meninos vestidos de adulto, uma aranha negra percorre o palco.
Parece uma cena corriqueira.
Nem sempre foi assim.
É preciso voltar no tempo, consultar as sagradas escrituras do futebol para compreender a beleza da música que emana das luvas e chuteiras imortais.
No princípio era o gol.
Todo menino queria fazer gol.
E todos corriam atrás da bola nas peladas.
Furiosos. Incansáveis. Como os fantasmas holandeses na Copa de 74.
Todos, menos um.
Um menino desafiando o gênesis. Um menino desafiando a própria essência do futebol.
Um subversivo: O goleiro.
Talvez uma simples vingança de um coração apaixonado. A bola ignorava solenemente seus carinhos. O traía em plena luz do dia com o primeiro centroavante que aparecia.
Planicka sonhava em ser como seus amigos Nejedly e Puc. Zamora entre as suas baforadas tropeçava na pelota. Combi nunca acertou um chute na escola. Marcos Mendonça nem tentava.
Albert Camus sentia-se um estrangeiro.
Entretanto sob as traves, inexpugnáveis. As bolas cruzavam a área e invariavelmente eram defendidas com raiva. Com ódio. Com desprezo.
De repente os meninos que não sabiam controlar uma bola, os exilados do mundo, esses meninos descobriram maravilhados que tinham seus super-heróis. E os seus super-heróis eram bacanas, vestiam trajes de super-heróis. Misteriosos. Enigmáticos.
E foram felizes. Por pouco tempo.
O gol era glória e paredão.
Os goleiros permaneciam emoldurados, pictóricos. Prisioneiros da pequena área, da tela. Finitos.
Mesmo Carrizo que nunca levou um gol de pênalti, era um pássaro preso nas engrenagens de La Maquina.
Até que um dia, na vastidão da mãe Rússia, um menino que jogava hockey foi levado pelos amigos para assistir um jogo de futebol. Por acaso o goleiro do poderoso Dínamo, Khomich machucou-se:
‘Pega no gol Iashin!’
Como o Rei dos Folgados em Coritiba, lá foi Lev Iashin ser gauche no gol.
Após meia hora de jogo, pânico.
Ligaram pra KGB. Ligaram pra Stalin.
Iashin foi retirado preso do gramado. Incomunicável.
Além de se recusar a levar um gol, Iashin todo vestido de negro ainda insistia em sair da área e jogar bola com os outros companheiros de time. Livre.
Proibido!
Pode. Não pode. Pode. Não pode.
Cadê o livro das regras?
Nada havia no livro das regras do futebol sobre a liberdade dos goleiros.
GLASNOST!
Lev Ivanovich Iashin foi o primeiro soviético no espaço. Foi professor de Yuri Gagarin. Ele insistia que a Terra era verde.
A bola, essa moça cobiçada por todos, caiu de amores por Lev que dormia ouvindo jazz moderno.
Jazz moderno, suprema heresia aos ouvidos dos atacantes rompedores.
Depois de Iashin vieram os Beatles. Raul e Jongbloed vestiram amarelo, Simonal vestiu azul, Banks desafiou Pelé para um duelo ao meio-dia, Leão foi garoto propaganda e Tomazewski apagou a luz do Império Britânico.
Porém liberdade não significa igualdade. Os goleiros continuavam sendo de certa forma vilões. Se a razão do futebol era o gol, eles existiam no limite da irracionalidade.
O jazz moderno rompera barreiras. Porém a escala cromática ainda possuía sua hierarquia. Atacantes marcam gols. Goleiros defendem.
Era assim desde o princípio dos tempos.
Mas o final dos tempos se aproximava.
Apocalipse. Dodecafonismo.
O futebol moderno subitamente se torna atonal quando a primeira bola chutada por Chilavert alcança as redes.
Os técnicos esbravejam no banco: ‘Queremos Beethoven, queremos Mozart, queremos Chopin’!
Os goleiros ensaiam o Concerto para Piano e Orquestra, Opus 42, de Schoenberg.
É tarde demais.
Na pequena cidade de Pato Branco no Paraná um menino veste-se de negro e luvas.
O menino cresce e hoje seu olhar percorre a partitura das quatro linhas do gramado.
Como uma aranha negra ele dirige-se ao palco do Morumbi.
Rogério Ivanovich Ceny.
Pois no princípio era o gol.
Todos os meninos queriam fazer gol.
E todos corriam atrás da bola nas peladas. Furiosos. Incansáveis. Como os fantasmas holandeses na Copa de 74.
Todos.
(Blog do Juca, http://blogdojuca.blog.uol.com.br/, 21/10/2007)