Wednesday, May 30, 2007

Soneto

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! Na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! O seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Álvares de Azevedo

Oração do Milho

Cora Coralina

Senhor, nada valho.
Sou a planta humilde dos quintais pequenos
e das lavouras pobres.
Meu grão, perdido por acaso,
nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e haste, e, se me ajudardes, Senhor,
mesmo planta de acaso, solitária,
dou espigas e devolvo em muitos grãos
o grão perdido inicial, salvo por milagre,
que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura.
Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo,
de mim não se faz o pão alvo universal.
O justo não me consagrou Pão de Vida
nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial
dos que trabalham a terra,
alimento de rústicos e animais de jugo.
Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques,
coroados de rosas e de espigas,
e os hebreus iam em longas caravanas
buscar na terra do Egito o trigo dos faraós,
quando Rute respigava cantando nas searas de Booz
e Jesus abençoava os trigais maduros,
eu era apenas o bró nativo das tabas ameríndias.
Fui o angu pesado e constante do escravo
na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proprietário, sou a polenta
do imigrante e a amiga dos que começam a vida
em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga,
o que me planta não levanta comércio,
nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa
e despreocupada dos paióis.
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado.
Sou o canto festivo dos galos
na glória do dia que amanhece.
Sou o cacarejo alegre das poedeiras
à volta dos ninhos.
Sou a pobreza vegetal agradecida a vós,
Senhor,
que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho!



Cora Coralina (Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretãs) (1889 -10/04/1985).
Publicou o primeiro livro aos 76 anos de idade e teve reconhecimento de sua obra aos 90, sendo divulgada por Carlos Drummond de Andrade.
Entre suas premiações, inclui-se o Prêmio Juca Pato, em 1983, como Intelectual do Ano.

Tuesday, May 29, 2007

Inimigos

O apelido de Maria Teresa, para o Norberto, era “Quequinha”.
Depois do casamento sempre que queria contar para os outros uma de sua mulher, o Norberto pegava sua mão carinhosamente, e começava:
__ Pois a Quequinha...
E a Quequinha, dengosa, protestava.
__ Ora, Beto!
Com o passar do tempo, o Norberto deixou de chamar a Maria Teresa de Quequinha. Se ela estivesse ao seu lado e ele quisesse se referir a ela, dizia:
__ A mulher aqui...
Ou, às vezes:
__ Esta mulherzinha...
Mas nunca mais Quequinha.
(O tempo, o tempo. O amor tem mil inimigos, mas o pior deles é o tempo. O tempo ataca em silêncio. O tempo usa armas químicas.)
Com o tempo, Norberto passou a tratar a mulher por “Ela”.
__ Ela odeia o Charles Bronson.
__ Ah, não gosto mesmo.
Deve-se dizer que o Norberto, a esta altura, embora a chamasse de Ela, ainda usava um vago gesto da mão para indicá-la. Pior foi quando passou a dizer “essa aí” e a apontar com o queixo.
__ Essa aí...
E apontava com o queixo, até curvando a boca com um certo desdém.
(O tempo, o tempo. O tempo captura o amor e não o mata na hora. Vai tirando uma asa, depois a outra...)
Hoje, quando quer contar alguma coisa da mulher, o Norberto nem olha na sua direção. Faz um meneio de lado com a cabeça e diz:
__ Aquilo...

Luís Fernando Veríssimo in "Novas Comédias da Vida Privada".

Caso de recenseamento


Carlos Drummond de Andrade

O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínqüo, aonde nunca chegam as notícias.

- Não quero comprar nada.

- Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.

- Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?

E fecha-lhe a porta.

Ele bate de novo.

- O senhor outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio?

- A senhora ano me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher esta papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.

- Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!

A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta reestabelecer o diálago.

- Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa e antes que eu chame meu marido!

- Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele. ( Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário).

- Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.

- É esse camelô aí que ano quer deixar a gente sossegada!

- Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo...

- Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria!

A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!

O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é nem camelô, nem policial, nem cobrador de impostos, nem enviado de Tenório Cavalcanti.

A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender o rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa, nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do governo.

- O senhor tem filhos, seu Ediraldo?

- Tenho três, sim senhor.

- Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?

- Pois não. Tenho Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4.

- Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?

- Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.

- Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...

- Isso eu não sei, não me lembro.

E voltando-se para a cozinha:

- Mulher, sabes o nome de Pipoca?

A mulher aparece, confusa.

- Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta. Reviraram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.

- Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?
- Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado minha senhora, disponham!

Bela Bela (trecho de Poema Sujo)

bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?

Não era Helena
nem Vera
nem Nara
nem Gabriela
nem Tereza
nem Maria

Seu nome
seu nome era...

Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão
de tanta noite
e tanto dia
perdeu-se na profusão
das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros
corsos
comícios
roleta
bilhar
baralho

mudou de cara e cabelos
mudou de olhos e risos
mudou de casa
e de tempo: mas está comigo

está perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta

Ferreira Gullar

(Há uma versão musicada por Milton Nascimento)

Chatear e Encher



Um amigo meu me ensina a diferença entre ``chatear`` e ``encher``.
Chatear é assim:
Você telefona para um escritório qualquer na cidade.
- Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar?
- Aqui não tem nenhum Valdemar.
Daí a alguns minutos, você liga de novo:
- O Valdemar, por obséquio.
- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.
- Mas não é do número tal?
- É, mas aqui não trabalha nenhum Valdemar.
Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:
- Por favor, o Valdemar já chegou?
- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo desse Valdemar nunca trabalhou aqui?
- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.
- Não chateia.
Daí a dez minutos, liga de novo.
- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um recado?
O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis.
Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:
- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém telefonou para mim?


Paulo Mendes Campos

Monday, May 28, 2007

Acaso

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos,
passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser...
A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo,
não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Sunday, May 27, 2007

Um pé de milho

Rubem Braga

Os americanos, através do radar, entraram em contato com a Lua, o que não deixa de ser emocionante. Mas o fato mais importante da semana aconteceu com o meu pé de milho.

Aconteceu que, no meu quintal, em um monte de terra trazida pelo jardineiro, nasceu alguma coisa que podia ser um pé de capim – mas descobri que era um pé de milho. Transplantei-o para o exíguo canteiro da casa. Secaram as pequenas folhas; pensei que fosse morrer. Mas ele reagiu. Quando estava do tamanho de um palmo, veio um amigo e declarou desdenhosamente que aquilo era capim. Quando estava com dois palmos, veio um outro amigo e afirmou que era cana.

Sou um ignorante, um pobre homem da cidade. Mas eu tinha razão. Ele cresceu, está com dois metros, lança suas folhas além do muro e é um esplêndido pé de milho. Já viu o leitor um pé de milho? Eu nunca tinha visto. Tinha visto centenas de milharais – mas é diferente.

Um pé de milho sozinho, em um canteiro espremido, junto do portão, numa esquina de rua – não é um número numa lavoura, é um ser vivo e independente. Suas raízes roxas se agarram no chão e suas folhas longas e verdes nunca estão imóveis. Detesto comparações surrealistas – mas na lógica de seu crescimento, tal como vi numa noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, de crinas ao vento e em outra madrugada, parecia um galo cantando.

Anteontem aconteceu o que era inevitável, mas que nos encantou como se fosse inesperado: meu pé de milho pendoou. Há muitas flores lindas no mundo, e a flor de milho não será a mais linda. Mas aquele pendão firme, vertical, beijado pelo vento do mar, veio enriquecer nosso canteirinho vulgar com uma força e uma alegria que me fazem bem. É alguma coisa que se afirma com ímpeto e certeza. Meu pé de milho é um belo gesto da terra.
Eu não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador da rua Júlio de Castilhos.

Flor-de-maio


Entre tantas notícias do jornal – o crime de Sacopã, o disco voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime que caiu, o homem que matou outro com machado e com foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés – há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os jornais publicaram.

Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta d’água, nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de avião. É assinada pelo senhordiretor do Jardim Botânico, e que a partir do dia 27 vale a pena visitar o Jardim, porque a planta chamada "flor-de-maio" está, efetivamente, em flor.

Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico, contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e escrever, telefonemas a dar, providências a tomar.

Agora, já desce a noite, e as plantas devem ser vistas pela manhã ou à tarde, quando há sol – ou mesmo quando a chuva as despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no chão.

Suspiro e digo comigo mesmo – que amanhã acordarei cedo e irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi – um impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam. Qualquer uma dessas tardes é possível que me dê vontade real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será tarde, nãohaverá mais "flor-de-maio", e então pensarei que é preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono posso estar em outra cidade em que não haja outono em maio, e sem outono em maio, não sei se em alguma cidade haverá essa "flor-de-maio".

No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas sejam lidas por alguém – uma pessoa melhor do que eu, alguma criatura correta e simples que tire dessa crônica a sua substância, a informação precisa e preciosa: no dia 27 em diante as "flores-de-maio" do Jardim Botânico estão gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a "flor-de-maio" – talvezcom a mulher e as crianças, talvez com a namorada, talvez só.

Ir só, no fim da tarde, ver a "flor-de-maio"; aproveitar a única notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia inteiro da cidade imensa. Se entre vós houver essa criatura,e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a humanidade possivelmente ainda poderá ser salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.
Rubem Braga, "Para gostar de ler", Ed. Ática, 1982.

Saturday, May 26, 2007

Meus oito anos

Casimiro de Abreu

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus —
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Friday, May 25, 2007

Poema em linha reta

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

O Letes

Charles Baudelaire, tradução Jorge Pontual


Vem ao meu peito, alma traiçoeira,
Tigresa adorada, monstro feliz;
Quero mergulhar meus dedos febris
Na espessura da tua cabeleira;

Nas anáguas cheias do teu odor,
Enterrar a cabeça dolorida,
E cheirar, como de flor ressequida,
O doce ranço do finado amor.

Quero dormir! Viver não, só dormir!
Num sono tão suave como a morte,
Meus beijos mansos terão por suporte
Teu corpo, como cobre a reluzir.

O abismo do teu leito eu almejo
Para engolir meu calmo sofrimento;
Na tua boca mora o esquecimento
E o rio Letes corre no teu beijo.

Meu destino, doravante delícia,
Perseguirei como um predestinado;
Mártir dócil, inocente culpado,
Cujo fervor estimula a sevícia,

Da gostosa cicuta uma poção
Sugarei para afogar meu despeito
Nas pontas encantadoras de um peito
Que nunca aprisionou um coração.


Le Léthé

Viens sur mon coeur, âme cruelle et sourde,
Tigre adoré, monstre au airs indolents;
Je veux longtemps plonger mes doigts tremblants
Dans l'épaisseur de ta crinière lourde;

Dans tes jupons remplis de ton parfum
Ensevelir ma tête endolorie,
Et respirer, comme une fleur flêtrie,
Le doux relent de mon amour défunt.

Je veux dormir! dormir plutôt que vivre!
Dans un sommeil aussi doux que la mort,
J'étalerai mes baisers sans remord
Sur ton beau corps poli comme le cuivre.

Pour engloutir mes sanglots apaisés
Rien ne me vaut l'abîme de ta couche;
L'oubli puissant habite sur ta bouche,
Et le Léthé coule dans tes baisers.

À mon destin, désormais mon délice,
J'obéirai comme un prédestiné;
Martyr docile, innocent condamné,
Dont la ferveur attise le supplice,

Je sucerai, pour noyer ma rancoeur,
Le népenthès et la bonne ciguë
Aux bouts charmants de cette gorge aiguë,
Qui n'a jamais emprisonné de coeur.

Thursday, May 24, 2007

A Uma Passante

Charles Baudelaire

A rua ensurdecedora ao redor de mim agoniza.
Longa, delgada, em grande luto, dor majestosa,
Uma mulher passa, de uma mão faustosa,
Soerguendo-se, balançando o festão e a bainha;
Ágil e nobre, com sua perna de estátua.
Eu, embevecido, inquieto como um extravagante,
Em seus olhos, o céu lívido onde se oculta o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que destrói.
Um clarão... depois a noite! - Beleza fugidia
Cujo olhar me faz subitamente renascer,
Não te verei senão na eternidade?
Alhures; bem longe daqui! Muito tarde! Jamais talvez!
Pois ignoro onde tu foste, tu não sabes onde vou,
Ah se eu a amasse, ah se eu a conhecesse!


La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaitre,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?
Ailleurs; bien loin d’ici! Trop tard!Jamais peut-être!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!


Tradução de Marco Antonio Frangiotti (in Baudelaire: Oeuvres Complètes, Paris: Ed. Robert Laffont, S.A. 1980, pgs. 68-69).

O homem; as viagens

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.


Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.


Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto - é isto?
idem
idem
idem.


O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.


Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.


Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar


Ao acabarem todos só resta ao homem (estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.


Carlos Drummond de Andrade in "As Impurezas do Branco", José Olympio, 1973

Wednesday, May 23, 2007

O mundo é grande

O mundo é grande e cabe

nesta janela sobre o mar.

O mar é grande e cabe

na cama e no colchão de amar.

O amor é grande e cabe

o breve espaço de beijar.


Carlos Drummond de Andrade in “Amar se Aprende Amando”

Tuesday, May 01, 2007

Perguntas de um operário que lê

Bertold Brecht


Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vêm o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilônia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas

Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.


O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a Guerra dos Sete Anos
Quem mais a ganhou?


Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas